Essa semana a mídia aproveitou a idéia fantástica de um jovem designer carioca para enterrar de vez a noção crítica do cidadão e, para ser mais exato, a noção de arte e sua função na sociedade.
Em meio a uma avalanche de opiniões contrárias que vão, desde a do secretário de segurança do Rio de Janeiro até o seu Manoel da padaria, o jogo "War In Rio", criado por Fábio Lopes, foi a coqueluche da semana.
O que não ficou bem explicado pela imprensa e pela mídia em geral é, porque um simples jogo, cujas regras foram baseadas na violência dos diversos grupos que brigam pelo poder nas áreas pobres e suburbanas do Rio de Janeiro, causou tanta comoção.
Seria simples explicar que, mesmo que o designer ache que seu jogo foi apenas uma brincadeira de mau gosto, trata-se mais do que isso. Trata-se de arte. Sim, isso mesmo - trata-se de arte.
A arte é assim mesmo. A arte é teimosa, turrona e mal educada com os absurdos. Não admite ser enganada. Não tem medo de reações. Aliás, a arte adora reações.
O que está acontecendo nesse país é que o cidadão comum já não reconhece a arte. Está envolvido com o entretenimento até o pescoço e com a idéia de que entretenimento é arte. Quando então a arte aparece, ele já não a reconhece.
Existe uma diferença fundamental entre arte e entretenimento. Enquanto o entretenimento faz apenas isso, ou seja, entreter, ludibriar os sentidos, enganar. A arte, pelo contrário, desperta, faz os sentidos, a mente e o espírito acordarem. Mostra novos caminhos, novos conceitos, altera paradigmas.
O jogo do designer Fábio Lopes não é apenas um jogo, mas um objeto de arte. Por essa razão causou tanta discussão e polêmica. Ao colocar num tabuleiro qualquer os personagens da famigerada guerra civil carioca, o designer materializou o sentimento e deu luz à consciência de milhares, senão milhões de pessoas no país. O jogo não é apenas um objeto de design. O jogo é uma obra de arte que ressalta a banalização da vida dessa pobre gente que vive vilipendiada por um poder público inócuo, assim como inócuos são seus representantes. E também, pelas facções, todas elas bandidas, que se aproveitaram do vácuo de atenção deixado por esse mesmo estado.
Além disso, o jogo do designer coloca uma outra questão, também não menos séria, que é a da definição do que podemos ou não expressar. Claro que o secretário de segurança pública do Rio de Janeiro se sentiu perturbado. Falou até em apologia ao crime. Como se o jogo, no caso, a meu ver, a obra de arte, fosse levar mais corrupção, milícias e traficantes para os morros do Rio. O que fica bem claro então, é que num país onde existe uma ditadura da informação e do entretenimento, fazer arte, se expressar genialmente, pode virar até crime. Isso é um grande perigo. O maior de todos.
Existe uma história muito interessante sobre Picasso.
Dizem que depois de ter pintado Guernica, recebeu a visita de um oficial nazista em seu atelier. O oficial passou cuidadosamente os olhos sobre a obra do mestre, que retratava os horrores do bombardeio da força aérea e exército do generalíssimo Franco sobre a população civil da cidade de Guernica, na Espanha, com o apoio de Hitler. Passou os olhos, andou de lá para cá e daqui para lá, enfim, com olhar inquisidor, dirigiu-se a Picasso e disse:
- Foi você quem fez isso?
E Picasso, com seu humor sarcástico de artista vivo e genial lhe respondeu:
- Não, foram vocês!
Agora fiquei sabendo por que as galerias de arte desse país estão cheias de lixo, de vazio, de arte morta. É porque estamos assistindo, há mais de uma geração, ao poder do entretenimento.
Arte é coisa séria. Artistas de verdade foram perseguidos em todas as épocas. Suas idéias sempre foram perigosas. Sempre alertaram, iluminaram o que estava escuro, escondido nas entranhas do poder e da maldade.
Agora eu sei também porque a lei Rouanet é tão perversa. Essa lei de incentivo, criada na era Collor, visa apenas ao entretenimento e não à arte. Jogou a decisão do mecenato nas mãos de marqueteiros de grandes empresas, que não estão nem aí para a cultura do país, mas estão muito aí para o marketing das empresas as quais representam.
Por exemplo, se eu fizer um filme, uma série de quadros, um peça, um musical, uma coreografia, ou o que for, falando sobre a derrama de óleo na Bahia de Guanabara, será que vou ter patrocínio da Petrobrás?
Duvido!
Ficam aí então as perguntas:
Onde está a arte do país?
Porque tanto entretenimento?
A quem serve essa lei Rouanet?
Posso fazer arte tranquilamente? Não vou ser punido por isso?
Parece um imbróglio esse texto, mas não tem jeito.
Uma discussão acaba levando à outra.
Tudo está interligado.
A vida é assim e a arte sabe disso.
Tomara que nossos artistas também.
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